A inteligência artificial pode extrair um manancial de dados quantitativos das imagens médicas em benefício dos doentes com cancro
Quando se analisam imagens médicas, é importante perceber que elas são mais do que imagens; são informação – e que grande parte dessa informação não é visualmente acessível. Isso significa que uma análise visual, puramente qualitativa, destas imagens pode ter diferentes interpretações e não ser suficiente para capturar a heterogeneidade interna da estrutura captada na imagem.
É aqui que entra em cena a Radiómica. A Radiómica trata as imagens médicas como dados que podem ser sujeitos ao data mining, e o seu objectivo principal é utilizar a enorme quantidade de informação gerada pelo cruzamento de algoritmos de extração de dados e de tecnologias de imagem de forma a guiar o processo de tomada de decisão clínica.
Isso, por sua vez, deverá beneficiar a Medicina de Precisão, a tão desejada abordagem personalizada para lutar contra o cancro e outras doenças, ao definir o melhor percurso possível, feito à medida das características de cada pessoa, em termos de diagnóstico, tratamento e prognóstico.
Impulsionada pela crescente capacidade de cálculo das máquinas, pela quantidade de dados vindos de múltiplas fontes (história clínica, técnicas genéticas e modalidades de imagiologia) e pela investigação na área dos algoritmos de alto desempenho, a Radiómica tornou-se, de há uns 10 anos para cá, numa florescente área de pesquisa. Os mais recentes esforços dizem respeito à integração da inteligência artificial (IA) na Radiómica – mais especificamente, de algoritmos de aprendizagem automática (machine learning) e de aprendizagem profunda (deep learning).
Na Fundação Champalimaud, o Grupo de Imagiologia Clínica Computacional (CCIG) do Champalimaud Research,trabalha em grande proximidade com o Serviço de Radiologia do Centro Clínico Champalimaud, precisamente no sentido de transpor os algoritmos de aprendizagem automática e de aprendizagem profunda para a prática clínica. O derradeiro objectivo destas pesquisas é implementar, no contexto clínico, os modelos matemáticos construídos, desenvolvendo ferramentas e plataformas de software dedicado.
Nos últimos anos, o CCIG tem trabalhado nas áreas da IA e da Radiómica com vista a resolver questões abertas e melhorar a qualidade de vida dos doentes com cancro da próstata, pâncreas, recto, pulmão e mama, gliomas e mielomas múltiplos, entre outros. Algoritmos de IA têm sido desenvolvidos para lidar com a previsão, a reincidência e os estadios de doença.
O grupo está igualmente a investigar várias questões ainda sem resposta relativas à interpretabilidade, robustez e equidade dos modelos, de forma a garantir a sua fiabilidade para o utilizador final. De facto, apesar do crescente número de publicações sobre este tópico, ainda é preciso abordar certos desafios inerentes ao uso da IA na Radiómica. Um deles é a interpretabilidade dos modelos, porque, especialmente na área médica, é crucial que os seres humanos percebam os resultados fornecidos pelo modelo.
IA “explicável”
É possível atingir esta meta criando modelos transparentes de baixa complexidade ou modelos mais complexos que explicam as suas decisões a posteriori, utilizando texto ou explicações visuais. Adicionalmente, têm sido desenvolvidas iniciativas viradas para a chamada “IA explicável" (onde os resultados da solução podem ser compreendidos pelos seres humanos, ao contrário do que acontece com o conceito de “caixa negra” na aprendizagem automática, onde nem sequer os autores do algoritmo são capazes de explicar como a IA chegou a uma dada decisão). Uma dessas iniciativas é a Explainable AI (XAI) da agência norte-americana DARPA (US Defense Advanced Research Projects Agency). Ao mesmo tempo, a regulamentação da UE em matéria de protecção de dados (GDPR) restringe a implementação de modelos não interpretáveis.
Em segundo lugar, para construir modelos robustos, é necessário dispor de conjuntos em grande escala de dados anotados, vindos de múltiplas instituições, e de estratégias de partilha de dados entre institutos/hospitais em conformidade com as regulamentações éticas e de protecção de dados. Cabe notar aqui que estes conjuntos de dados heterogéneos devem ser representativos da população, de forma a eliminar enviesamentos (étnicos, de género, etários, etc.) que iriam comprometer as decisões dos modelos de IA no mundo real.
Ainda um outro desafio que provém da heterogeneidade é o da estandardização/harmonização transversal dos diversos conjuntos de dados de forma a se conseguir tirar conclusões entre estudos. Para obter características radiómicas robustas é importante, em particular, estabelecer iniciativas de padronização tais como a Image Biomarker Standardization Initiative (IBSI), fornecendo nomenclaturas e definições comuns para os biomarcadores nas imagens, modelos comparativos de processamento de imagem e de extração de características, e orientações para elaborar relatórios.
É igualmente importante realizar estudos em humanos e utilizar “fantomas” (objectos que simulam o corpo humano) para avaliar a repetibilidade e/ou reprodutibilidade entre scanners, protocolos e institutos. Por último, há o desafio da validação biológica, que provém do facto de, com a extração de um número crescente de características das imagens, existir um maior risco de sobreajustamento e de superinterpretação dos resultados. Assim, para estabelecer uma relação de causalidade entre as características radiómicas e os desfechos clínicos, é preciso combinar a Radiómica com a genómica, com a histopatómica e mesmo obter imagens do “habitat” do tumor – isto é, ter em conta o microambiente tumoral.
Ao longo dos últimos cinco anos, o CCIG desenvolveu uma rede internacional de radiómica com mais de 15 parceiros da Europa, Estados Unidos da América e Brasil. O CCIG funciona como uma plataforma técnica e participa em projectos conjuntos com parceiros clínicos que integram a rede.
Em 2020, o CCIG recebeu financiamento do Programa de Investigação e Inovação Horizonte 2020 da UE para realizar um projecto chamado ProCAncer-i. Nickolas Papanikolaou, investigador principal do CCIG, foi eleito Coordenador Científico do ProCAncer-i, e a Fundação Champalimaud estará envolvida no projecto como parceiro científico e técnico.
O projecto ProCAncer-i
O projecto diz respeito ao segundo cancro mais frequente nos homens: o cancro da próstata. O seu objectivo é desenvolver um repositório centralizado de mais de 17 mil exames de imagens por ressonância magnética multiparamétrica (mpIRM) e construir algoritmos de IA aplicados a nove tipologias diferentes de casos clínicos. A IRM multiparamétrica apresenta a vantagem de não ser invasiva, de não ser ionizante, e de ter o potencial de capturar a heterogeneidade do tumor em 3D, possibilitando a identificação do cancro da próstata em caso de biópsia negativa.
Além disso, a utilização de um grande conjunto de dados heterogéneos de mpIRM da próstata, de diversos fornecedores de máquinas de ressonância magnética, bem como diferentes parâmetros de aquisição (de imagens), permitirá abordar, durante o projecto, os desafios acima referidos. Para o fazer, será implementada uma metodologia de modelização com IA em três fases. Durante a primeira fase, será desenvolvido um modelo base global baseado em 60% dessas imagens, que foram obtidas retrospectivamente. Durante a segunda fase, três modelos específicos de fornecedores (Philips, Siemens e GE) serão desenvolvidos com base em grande parte dos 40% dos dados que serão obtidos prospectivamente. A terceira fase consistirá em desenvolver um modelo neutro do ponto de vista do fornecedor utilizando os resultados gerados pelos modelos específicos da segunda fase. Esse modelo neutro será integrado no modelo inicial para lidar com a variabilidade nos conjuntos de dados de cancro da próstata.
Posto tudo isto, os líderes do projecto não deixam de enfatizar que “a IA aplicada à Medicina de Precisão não deve substituir o trabalho do radiologista, mas antes ser utilizada como uma ferramenta para melhorar esse trabalho e garantir que as necessidades dos doentes vêm sempre em primeiro lugar”. E concluem: “A IA não é um futuro distante, é o presente. Os engenheiros e os especialistas de computação precisam de juntar esforços com os clínicos na concepção e na melhoria da equidade, reprodutibilidade e desempenho dos modelos para fazer com que a sociedade esteja plenamente disposta a adoptá-la.”
Mapa radiómico em 3D: representação tridimensional a cores da característica radiómica chamada Entropia, que reflecte a heterogeneidade espacial do tumor, num doente com um tumor do cérebro.
Escrito por Ana Castro Verde, investigadora do Grupo de Imagiologia Clínica Computacional, Champalimaud Research
Editado por Ana Gerschenfeld, Health and science writer da Fundação Champalimaud